A MENTALIDADE REVOLUCIONÁRIA
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 16
de agosto de 2007
Desde que se espalhou por aí
que estou escrevendo um livro chamado “A Mente Revolucionária”, tenho recebido
muitos pedidos de uma explicação prévia quanto ao fenômeno designado nesse
título.
A mente revolucionária é um
fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos
desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade
de documentos. Esse é o assunto da investigação que me ocupa desde há alguns
anos. “Livro” não é talvez a expressão certa, porque tenho apresentado alguns
resultados desse estudo em aulas, conferências e artigos e já nem sei se algum
dia terei forças para reduzir esse material enorme a um formato impresso
identificável. “A mente revolucionária” é o nome do assunto e não necessariamente
de um livro, ou dois, ou três. Nunca me preocupei muito com a formatação
editorial daquilo que tenho a dizer. Investigo os assuntos que me interessam e,
quando chego a algumas conclusões que me parecem razoáveis, transmito-as
oralmente ou por escrito conforme as oportunidades se apresentam. Transformar
isso em “livros” é uma chatice que, se eu pudesse, deixaria por conta de um
assistente. Como não tenho nenhum assistente, vou adiando esse trabalho
enquanto posso.
A mente revolucionária não é
um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que
seu campo de expressão mais visível e seu instrumento fundamental seja a ação
política.
Para facilitar as coisas, uso
as expressões “mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para
distinguir entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas
manifestações, e a característica essencial e permanente que permite apreender
a sua unidade ao longo do tempo.
“Mentalidade revolucionária” é
o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo
se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana
em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador
de um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou
passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o
tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse
indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode
testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que
este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas
o juiz de toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e
condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e obras
de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma delas, ele
está tão acima da humanidade histórica que não é inexato chamá-lo de
Super-Homem.
Autoglorificação do
Super-Homem, a mentalidade revolucionária é totalitária e genocida em si,
independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em diferentes
circunstâncias e ocasiões.
Recusando-se a prestar
satisfações senão a um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente
disposto a destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à
remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é o
inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e conquistadores da
antigüidade impressionam pela modéstia das suas pretensões e por uma notável
circunspecção no emprego dos meios.
O advento do revolucionário ao
primeiro plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por
volta do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII –
inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio
permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as guerras
empreendidas por eles e o morticínio de populações civis necessário à consolidação
do seu poder mataram muito mais gente do que a totalidade dos conflitos
bélicos, epidemias terremotos e catástrofes naturais de qualquer espécie desde
o início da história do mundo.
O movimento revolucionário é o
flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o seu advento sobre
a Terra.
A expansão da violência
genocida e a imposição de restrições cada vez mais sufocantes à liberdade
humana acompanham pari passu a disseminação da mentalidade
revolucionária entre faixas cada vez mais amplas da população, pela qual massas
inteiras se imbuem do papel de juízes vingadores nomeados pelo tribunal do
futuro e concedem a si próprios o direito à prática de crimes imensuravelmente
maiores do que todos aqueles que a promessa revolucionária alega extirpar.
Mesmo se não levarmos em conta
as matanças deliberadas e considerarmos apenas a performance revolucionária
desde o ponto de vista econômico, nenhuma outra causa social ou natural criou
jamais tanta miséria e provocou tantas mortes por desnutrição quanto os regimes
revolucionários da Rússia, da China e de vários países africanos.
Qualquer que venha a ser o
futuro da espécie humana e quaisquer que sejam as nossas concepções pessoais a
respeito, a mentalidade revolucionária tem de ser extirpada radicalmente do
repertório das possibilidades sociais e culturais admissíveis antes que, de
tanto forçar o nascimento de um mundo supostamente melhor, ela venha a fazer
dele um gigantesco aborto e do trajeto milenar da espécie humana sobre a Terra
uma história sem sentido coroada por um final sangrento.
Embora as distintas ideologias
revolucionárias sejam todas, em maior ou menor medida, ameaçadoras e daninhas,
o mal delas não reside tanto no seu conteúdo específico ou nas estratégias de
que se servem para realizá-lo, quanto no fato mesmo de serem revolucionárias no
sentido aqui definido.
O socialismo e o nazismo são
revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma classe
ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios de uma
remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida humana. Os
malefícios que prenunciam se tornam universalmente ameaçadores porque não se
apresentam como respostas locais a situações momentâneas, mas como mandamentos
universais imbuídos da autoridade de refazer o mundo segundo o molde de uma
hipotética perfeição futura. A Ku-Klux-Klan é tão racista quanto o nazismo, mas
não é revolucionária porque não tem nenhum projeto de alcance mundial. Por essa
razão seria ridículo compará-la, em periculosidade, ao movimento nazista. Ela é
um problema policial puro e simples.
Por isso mesmo é preciso enfatizar
que o sentido aqui atribuído ao termo “revolução” é ao mesmo tempo mais amplo e
mais preciso do que a palavra tem em geral na historiografia e nas ciências
sociais presentemente existentes. Muitos processos sócio-políticos usualmente
denominados “revoluções” não são “revolucionários” de fato, porque não
participam da mentalidade revolucionária, não visam à remodelagem integral da
sociedade, da cultura e da espécie humana, mas se destinam unicamente à
modificação de situações locais e momentâneas, idealmente para melhor. Não é
necessariamente revolucionária, por exemplo, a rebelião política destinada
apenas a romper os laços entre um país e outro. Nem é revolucionária a simples
derrubada de um regime tirânico com o objetivo de nivelar uma nação às liberdades
já desfrutadas pelos povos em torno. Mesmo que esses empreendimentos empreguem
recursos bélicos de larga escala e provoquem modificações espetaculares, não
são revoluções, porque nada ambicionam senão à correção de males imediatos ou
mesmo o retorno a uma situação anterior perdida.
O que caracteriza
inconfundivelmente o movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um
futuro hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada.
A revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente
expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu
poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da
sua influência.
Se, nesse sentido, vários
movimentos político-militares de vastas proporções devem ser excluídos do
conceito de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, vários
movimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e
cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituir-se em poderes políticos
com pretensões de impor universalmente novos padrões de pensamento e conduta
por meios burocráticos, judiciais e policiais. A rebelião húngara de 1956 ou a
derrubada do presidente brasileiro João Goulart, nesse sentido, não foram
revoluções de maneira alguma. Nem o foi a independência americana, um caso
especial que terei de explicar num outro artigo. Mas sem dúvida são movimentos
revolucionários o darwinismo e o conjunto de fenômenos pseudo-religiosos
conhecido como Nova Era. Todas essas distinções terão de ser explicadas depois
em separado e estão sendo citadas aqui só a título de amostra.
Entre outras confusões que
este estudo desfaz está aquela que reina nos conceitos de “esquerda “e
“direita”. Essa confusão nasce do fato de que essa dupla de vocábulos é usada
por sua vez para designar duas ordens de fenômenos totalmente distintos. De um
lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contrarrevolução. Não
parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para
designar as duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém,
fez com que o próprio movimento revolucionário se apropriasse dos dois termos,
passando a usá-los para designar suas subdivisões internas. Os girondinos, que
estavam à esquerda do rei, tornaram-se a “direita” da revolução, na mesma
medida em que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da
vida pública e já não tinham direito a uma denominação política própria. Esta
retração do “direitismo” admissível, mediante a atribuição do rótulo de
“direita” a uma das alas da própria esquerda, tornou-se depois um mecanismo
rotineiro do processo revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contrarrevolucionários
genuínos foram frequentemente obrigados a aliar-se à “direita “revolucionária e
a confundir-se com ela para poder conservar alguns meios de ação no quadro
criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez
excluída a contrarrevolução do repertório das ideias politicamente admissíveis,
o ressentimento contrarrevolucionário continuou existindo como fenômeno psicossocial,
e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária
como pretexto e apelo retórico
para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente conservadoras
e tradicionalistas, revoltadas contra a “direita” revolucionária imperante no
momento. O apelo do MST à nostalgia agrária ou a retórica
pseudo-tradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem esquecer a índole
estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi
tomado, durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também
não é preciso dizer que, nas disputas internas do movimento revolucionário, as
facções em luta com frequência se acusam mutuamente de “direitistas” (ou
“reacionárias”). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo “a
reação” e “o comunismo” correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo
discurso que primeiro tratou os nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos
e depois como adeptos da “reação” empenhados em “salvar o capitalismo” contra a
revolução proletária.
Os termos “esquerda” e
“direita” só têm sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de
revolução e contrarrevolução respectivamente. Todas as outras combinações e
significados são arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo, mas apenas
uma utilidade oportunística como símbolos da unidade de um movimento político e
signos demonizadores de seus objetos de ódio.
Nos EUA, o termo “direita” é
usado ao mesmo tempo para designar os conservadores em sentido estrito, contrarrevolucionários
até à medula, e os globalistas republicanos, “direita” da revolução mundial.
Mas a confusão existente no Brasil é muito pior, onde a direita contrarrevolucionária
não tem nenhuma existência política e o nome que a designa é usado, pelo
partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro
mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega
para rotular o próprio partido governante.
Para mim está claro que só se
pode devolver a esses termos algum valor descritivo objetivo tomando como linha
de demarcação o movimento revolucionário como um todo e opondo-lhe a direita contrarrevolucionária,
mesmo onde esta
não tenha expressão política e
seja apenas um fenômeno cultural.
A essência da mentalidade contrarrevolucionária
ou conservadora é a aversão a qualquer projeto de transformação abrangente, a
recusa obstinada de intervir na sociedade como um todo, o respeito quase religioso
pelos processos sociais regionais, espontâneos e de longo prazo, a negação de
toda autoridade aos porta-vozes do futuro hipotético.
Nesse sentido, o autor destas
linhas é estritamente conservador. Entre outros motivos, porque acredita que só
o ponto de vista conservador pode fornecer uma visão realista do processo
histórico, já que se baseia na experiência do passado e não em conjecturações
de futuro. Toda historiografia revolucionária é fraudulenta na base, porque
interpreta e distorce o passado segundo o molde de um futuro hipotético e aliás
indefinível. Não é uma coincidência que os maiores historiadores de todas as
épocas tenham sido sempre conservadores.
Se, considerada em si mesma e
nos valores que defende, a mentalidade contrarrevolucionária deve ser chamada
propriamente “conservadora”, é evidente que, do ponto de vista das suas
relações com o inimigo, ela é estritamente “reacionária”. Ser reacionário é
reagir da maneira mais intransigente e hostil à ambição diabólica de mandar no
mundo.
Em acréscimo ao meu artigo de
16 de agosto, eis aqui mais alguns traços que definem a mentalidade
revolucionária:
1. O revolucionário não
entende a injustiça e o mal como fatores inerentes à condição humana, que podem
ser atenuados, mas não eliminados, e sim como anomalias temporárias criadas por
uma parcela da humanidade, a qual parcela — os burgueses, os judeus, os
cristãos, etc. — pode ser localizada e punida, extirpando-se destarte a raiz do
mal.
2. A parcela culpada espalha o
mal e o pecado por meio do exercício de um poder – econômico, político, militar
e cultural. Logo, deve ser eliminada por meio de um poder superior, o poder
revolucionário, criado deliberadamente para esse fim.
3. O poder maligno domina a
sociedade como um todo, moldando-a à imagem e semelhança de seus interesses,
fins e propósitos. A erradicação do mal deve tomar, portanto, a forma de uma
reestruturação radical da ordem social inteira. Nada pode permanecer intocado.
O poder revolucionário, como o Deus da Bíblia, “faz novas todas as coisas”. Não
há limites para a abrangência e profundidade da ação revolucionária. Ela pode
atingir mesmo as vítimas da situação anterior, acusando-as de ter-se habituado
ao mal ao ponto de se tornar suas cúmplices e por isso necessitar de castigo
purificador tanto ou quase tanto quanto os antigos donos do poder.
4. Embora causado por uma
parcela determinada da espécie humana, o mal se espalha tão completamente por
toda parte que se torna difícil conceber a vida sem ele. A nova sociedade de
ordem, justiça e paz não pode, portanto, ser imaginada senão em linhas muito
gerais, tão diferente ela será de tudo o que existiu até agora. O
revolucionário não tem, portanto, a obrigação — nem mesmo a possibilidade — de
expor de maneira clara e detalhada o plano da nova sociedade, muito menos de
provar sua viabilidade ou demonstrar, em termos da relação custo-benefício, as
vantagens da transformação. Estas são dadas como premissas fundantes, de modo
que a exigência de provas é impugnada automaticamente como subterfúgio para evitar
a mudança e condenada ipso facto como elemento a ser eliminado. A revolução é
fundamento de si própria e não pode ser questionada de fora.
5. Embora conhecida apenas
como uma imagem muito geral e vaga, a sociedade futura coloca-se por isso acima
de todos os julgamentos humanos e se torna ela própria a premissa fundante de
todos os valores, de todos os juízos, de todos os raciocínios. Uma consequência
imediata disso é que o futuro, não tendo como ser concebido racionalmente, só
pode ser conhecido por meio de sua imagem na ação revolucionária presente, a
qual ação por isto mesmo se subtrai por sua vez a qualquer julgamento humano,
exceto o dos líderes revolucionários que a encarnam e personificam. Mas mesmo
estes podem representá-la de maneira imperfeita, por serem filhos da velha
sociedade e carregarem em si, ao menos parcialmente, os germes do antigo mal. A
autoridade intelectual e profética dos líderes revolucionários é, portanto,
provisória e só dura enquanto eles têm o poder material de assegurá-la. A condição
de guia dos povos em direção ao futuro beatífico é, portanto, incerta e
revogável, conforme as irregularidades do percurso revolucionário. Os erros e
crimes do líder caído, não podendo ser imputados à sociedade futura, nem ao
processo revolucionário enquanto tal, nem ao movimento como um todo, só podem
ser explicados, portanto, como um efeito residual do passado condenado: o
revolucionário, por definição, só peca por não ser revolucionário o bastante.