Após CPI, milicianos reocupam o Rio
Primeiro e segundo escalões foram presos e agora estão voltando
às ruas; mortes recentes creditadas ao bando expõem ousadia do esquema
RIO - Passados dez anos
da CPI das Milícias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro – que indiciou
mais de 200 pessoas –, esses grupos paramilitares ampliaram seu protagonismo no
Estado. A investigação parlamentar apontou envolvimento de policiais, agentes
penitenciários e bombeiros, além de políticos que os protegiam, e resultou na
prisão de alguns dos seus principais chefes. A atividade criminosa, porém,
continuou. Agora, esses grupos exibem publicamente a sua força, apesar de o
tráfico de drogas dominar as atenções em razão dos constantes tiroteios.
Segundo o deputado
estadual Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu a CPI e até hoje circula com
seguranças armados por causa das frequentes ameaças, as milícias já dominam
território maior que o de traficantes. Dez anos depois da comissão, afirma ele,
o desafio é monitorar os milicianos que foram presos e estão saindo. “A CPI citou
mais de mil nomes, e todo o primeiro e o segundo escalões das milícias foi
preso. Agora as pessoas estão saindo – e têm de sair mesmo, ninguém está
propondo pena perpétua. Mas evidentemente elas precisam ser monitoradas”, diz o
parlamentar.
Há uma semana, milicianos
mataram cinco jovens de 16 a 19 anos, com tiros na cabeça, em Maricá, na região
metropolitana. Os assassinos gritaram “aqui é milícia, vamos voltar” e fugiram.
Trata-se de uma prática comum entre milicianos: aterrorizar a população e, na sequência,
cobrar por serviços, como a venda de gás de cozinha em botijões a preços
extorsivos, comércio ilegal de sinal de internet e TV a cabo e exploração de
agiotagem.
Filmada de um helicóptero
de TV na manhã seguinte à chacina, a ação de milicianos em Bateau Mouche e
Chacrinha foi outra prova da ousadia. Armados com fuzis e pistolas, eles
trocaram tiros com traficantes. Nas imagens, há homens com uniformes iguais ao
da PM. A corporação investiga se eram policiais ou criminosos comuns com
fardas.
A execução da vereadora
Marielle Franco (PSOL), no dia 14, na região central do Rio, também pode ter
sido ação de milicianos, no estilo das máfias. O fato de ela e o motorista
terem sido atingidos, apesar dos vidros escuros, denunciou a perícia do
atirador, provavelmente profissional. Antes de ser vereadora, Marielle atuou
como assessora parlamentar na CPI.
Expansão. Especialistas
ouvidos pelo Estado estimam que as milícias estejam em mais de 200
territórios do Rio. Elas se expandem por bairros da zona norte e oeste da
capital e por municípios da região metropolitana e da Baixada Fluminense em
direção a Nova Iguaçu e São João de Meriti, e disputam áreas com o tráfico. Na
região, já houve casos em que os milicianos desfilaram nas ruas exibindo seus
fuzis e metralhadoras.
O delegado Claudio
Ferraz, ex-chefe da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas,
nomeado em 2007 com o intuito de combater as milícias, lembra que à época esses
grupos eram considerados um “mal menor”. Quando começaram a eleger vereadores e
deputados, o poder público passou a atuar contra eles. “Hoje não há mais áreas
neutras, as milícias entraram em todas. Com o enfraquecimento das UPPs, novos
vácuos estão abrindo para elas. Por isso o Rio está pegando fogo”, analisa
Ferraz.
Inicialmente, as milícias
eram vistas como grupos que “limpariam” as comunidades dos traficantes e de
criminosos sem precisar se preocupar com o respeito às leis. Quando dominaram
as localidades, porém, a conversa mudou. “Viraram um bando criminoso comum,
fazem atrocidades como o tráfico faz, extorquindo como a máfia dos anos 1950
nos Estados Unidos. Agem à luz do dia, uniformizados. Quem não aceita é punido:
eles põem fogo no estabelecimento, destroem cargas, matam”, diz o promotor
Jorge Luís Furquim, que investiga milícias há 15 anos.
O sociólogo Ignácio Cano,
coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do
Rio (Uerj), denuncia que nada foi feito pelo Estado em relação aos milicianos.
“Inventaram as UPPs para recuperar as áreas do tráfico, mas nada para a
milícia”, avalia. “Agora, a intervenção federal na segurança também não
contemplou esse problema.”
Procurada, a Secretaria
de Estado de Segurança afirmou que atua com rigor no combate aos grupos
paramilitares. De 2007 a 2017, foram presos 1.377 milicianos, segundo a
pasta.
Em áudio, miliciano tenta convencer traficante a 'atravessar' de
lado, mostrando que estão mandando como nunca
RIO — A atuação de
milicianos na guerra pelo controle da favela da Bateau Mouche, na Praça Seca,
Zona Oeste do Rio, onde moradores convivem com conflitos desde o ano passado,
também passa pelo recrutamento de adversários. Reportagem exibida neste domingo
pelo “Fantástico”, da TV Globo, revelou áudios de paramilitares incentivando
traficantes a mudar de lado. No Rio, o combate a esses grupos de milicianos é
feito pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco).
Em uma das gravações, um
miliciano pede ao traficante para passar informações e depois
"atravessar": "O menor está em contato comigo. Ele é gerente da
boca, tem uma pistola. Falei com ele: 'sabe o que você pode fazer? Sai dando
informação pra a gente, depois tu pega e atravessa, pô'". Em outro
registro, o paramilitar diz: "Dá meu contato pra ele que eu vou entrar na
mente dele".
Moradores da Praça Seca
relataram para a reportagem do Fantástico como funciona o domínio dos milianos
na região. Além de cobrarem R$ 40 por uma falsa segurança e monopolizarem os
serviços de gás, TV a Cabo, água e internet, a quadrilha controla o conteúdo
dos celulares de quem vive no local:
"...Eles olham até o
telefone das pessoas. Mandam você desbloquear e se tiver alguma coisa no
telefone que comprometa eles, você vai pagar por aquilo (...) Eles olham as
mensagens, as ligações, whatsapp (...) Olham a sua galeria de fotos, vêem se
você está repassando fotos, vídeos".
A quadrilha também envia
ameaças em grupos de WhatsApp de moradores: "Pode meter o pé do morro que
agora não vai ter desenrolo, o pau vai cantar, a jiripoca vai piar, a bala vai
voar e não tem jeito. É ordem. Morador que não pagou os dias de atraso, vai
pagar, mano. Vai ter que pagar. Não vai ter Bope, não vai ter ninguém, não
(...) É milícia do Rio de Janeiro, rapá!”, avisam.
Ainda conforme a
reportagem, o poder das milícias não parece diminuir no Rio, apesar de o estado
estar sob intervenção federal. A Polícia investiga a participação desses grupos
paramilitares na execução da vereadora Marielle Franco (Psol) e também de cinco
jovens dentro d eum condomínio, na cidade de Maricá.
Testemunhas do assassinato de Marielle dão detalhes sobre o crime e dizem que PMs as expulsaram do local
Jornal O Globo localizou duas pessoas que afirmam ter
presenciado o momento em que vereadora e motorista foram executados no Centro
do Rio. Ambas contaram versões idênticas e nenhuma foi ouvida pela polícia.
Uma reportagem
publicada na edição deste domingo (1) pelo jornal O Globo revela novos detalhes
sobre a execução da vereadora do Psol Marielle Franco e do motorista Anderson
Gomes. As informações foram dadas por duas testemunhas que não foram ouvidas
pela polícia. Ambas teriam afirmado que policiais militares mandaram
testemunhas sair do local do crime.
O Globo conversou
com as duas testemunhas em separado e ambas deram a mesma versão sobre o crime,
que inclui detalhes sobre o momento da abordagem, a rota de fuga e as
características físicas do autor dos disparos que mataram a vereadora e o
motorista.
Segundo as testemunhas,
o carro em que os assassinos estavam imprensou o veículo conduzido por Anderson
no qual estavam Marielle e uma assessora parlamentar e que quase subiu na
calçada. Ambas disseram, também, que só viram um veículo no momento em que
foram feitos os disparos. As imagens de câmeras de vigilância sugeriam que dois
veículos haviam perseguido o carro em que a vereadora estava.
As testemunhas disseram
também que viram um homem negro, que estava sentado no banco de trás do carro
dos criminosos, colocando o braço para fora do veículo com uma arma de cano
alongado e que o armamento parecia ter um silenciador.
As duas pessoas ouvidas
pelo jornal afirmaram ainda que o carro usado pelos criminosos deu uma guinada
e fugiu, cantando pneus, pela Rua Joaquim Palhares. Até então, a suspeita era
de que a fuga teria ocorrido pela Rua João Paulo Primeiro, perpendicular à
Joaquim Palhares.
Ainda segundo o Jornal
O Globo, as duas testemunhas revelaram que permaneceram no local do crime até a
chegada da polícia, mas que os policiais militares mandaram todos sair de lá
sem serem ouvidos.
Desde os assassinatos
de Marielle e Anderson Gomes, a investigação está sob sigilo. Diante da
reportagem do Jornal O Globo, a GloboNews questionou
à Polícia Civil sobre a razão perla qual as duas testemunhas não foram ouvidas.
A corporação não se pronunciou a respeito.
Na semana passada, o
secretário de Segurança, general Richard Nunes, disse em uma entrevista à GloboNews que
é inegável que
as investigações sobre o crime indiquem uma motivação relacionada à atuação
política de Marielle Franco. Um investigador do caso relatou ao
jornal O Globo que estão sendo considerados projetos da vereadora e conflitos
relacionados à atividade legislativa, apesar de ela nunca ter recebido ameaças.
O mesmo agente afirmou que ela defendia pautas que contrariavam interesses de
grupos, inclusive de milicianos.
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