ENFRENTAMENTO Ruas do Rio de Janeiro tomadas pelo povo em
protesto contra a repressão: bem mais do que 100 mil (Crédito: Arquivo /
Agência O Globo)
Cinquenta anos depois, a Passeata dos 100 mil, no Rio de
Janeiro, ainda ecoa no imaginário político nacional como um grande encontro
pela liberdade democrática e como um fator decisivo para o endurecimento do
regime militar
Foi a primeira grande
manifestação contra o regime militar. ”Mataram um estudante, podia ser seu
filho”. “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. Algumas das palavras de
ordem que ecoaram durante a passeata dos 100 mil, que tomou as ruas do centro
do Rio de Janeiro em 26 de junho de 1968, podem não estar na ponta da língua
dos brasileiros de hoje, 50 anos depois. Mas o efeito daquele histórico ato de
coragem permanece vivo na memória das lutas democráticas do País. Naquele
momento, as ilusões se esvaneciam e restava a certeza de que os militares
estavam no poder para ficar. Uma parte da classe média que fez vista grossa
para o golpe dava sinais de reação depois de perceber que tinha entrado numa
enrascada — e que a repressão seria crescente. Para os militares, diante da
insatisfação popular, estava dado o sinal para o endurecimento do regime e para
a decretação do AI-5, o Ato Institucional que, entre outras providências,
destituiu o Congresso Nacional.
Como descreveu o jornalista Elio Gaspari, a
ditadura havia perdido a vergonha. Estava escancarada. Assassinato
no calabouço
Organizada pelo movimento
estudantil, a Passeata dos 100 mil começou a se formar três meses antes, em 28
de março, quando o aluno secundarista Edson Luis de Lima Souto, de 18 anos, foi
morto pela polícia no restaurante Calabouço. Natural de Belém (PA), Edson
batalhava pela melhoria da qualidade e pela redução dos
preços da comida, mas
não era um militante empenhado contra a ditadura. Inocente, tombou atingido por
um tiro no coração de uma pistola calibre 45 — e disparou um movimento de
protesto que se prolongou pelos meses seguintes. O velório e a Missa de Sétimo
Dia de Edson reuniram dezenas milhares de pessoas indignadas com seu
assassinato cruel. O enfrentamento entre os estudantes e a polícia se
intensificava a cada dia. Na manhã do dia 21 de junho o centro do Rio foi palco
do episódio conhecido como a “sexta-feira sangrenta”, com um saldo de três
mortos, dezenas de feridos e mais de mil presos. Uma semana mais tarde, com grande
apoio de artistas, intelectuais e da Igreja Católica, se formava a histórica
passeata.
“A gente queria votar, a
gente queria o fim da censura, a gente queria uma série de coisas que, depois
dessa movimentação toda, até pioraram” Joyce Moreno, cantora
Desde o início da manhã
as pessoas começaram a se juntar nas ruas da Cinelândia. Durante seis horas, a
multidão protestou contra o governo e percorreu lentamente o caminho até a
Assembléia Legislativa, pedindo o fim da repressão e da censura e clamando por
democracia. O evento não teve distúrbios nem repressão policial, ainda que o
Exército contasse com dez mil homens de prontidão para enfrentar qualquer
imprevisto. Entre os principais oradores estavam representantes do clero,
inclusive o bispo-auxiliar do Rio, Dom Castro Pinto. É dele a frase “calar os
moços é violentar nossas consciências”. O líder estudantil e presidente da
União Metropolitana dos Estudantes (UME), Vladimir Palmeira, lembrou da morte
de Edson Luis ao discursar sobre a capota de um carro, diante da igreja da
Candelária. “Um dia será vingado”, disse. “Este lugar tem um significado muito
grande para nós. Na missa de Edson foi aqui que fomos violentamente reprimidos.
Hoje o panorama é diferente. Prova de que a potencialidade da luta popular é
maior do que as forças da repressão”. A classe artística compareceu em peso à
manifestação. Nomes como Chico Buarque, Edu Lobo, Nana Caymmi, Gilberto Gil e
Caetano Veloso engrossavam o coro dos descontentes com o regime.
A cantora Joyce Moreno,
então com 20 anos e estudante de jornalismo na PUC do Rio, participou da
passeata num grupo liderado pelo cantor Aquiles, do MPB-4, que incluía Chico,
Vinícius de Moraes e Zé Rodrix. “Não é uma coisa que se esqueça. Foi muito
forte. A gente estava, todo mundo, com várias questões em mente e havia
reuniões frequentes nas casas das pessoas e nos teatros”, afirma. “Era o
momento de dizer não para várias coisas que estavam acontecendo. A gente queria
votar, a gente queria o fim da censura, a gente queria uma série de coisas que,
na verdade, depois dessa movimentação toda, até pioraram”, diz Joyce. Chegou-se
a acreditar naquele momento que o povo unido poderia derrubar a ditadura. Mas
não foi isso que aconteceu. Em vez de liberdade, a sociedade assistiu a mais
mortes e torturas. A tão sonhada redemocratização ainda levaria duas décadas
para ser alcançada.