Diferentes tipos da submetralhadora MP5, arma que matou
Marielle, em exposição na sede da firma na Alemanha
SAIBA MAIS
No cinema, Bruce Willis usou uma das submetralhadoras
da empresa para matar vilões em Duro de Matar. Em 2016, o controlador da
Heckler & Koch (H&K), Andreas Heeschen, definiu a empresa como a
"Porsche das armas".
Mas a Heckler & Koch também ostenta outras marcas:
seus produtos alimentam guerras e estão entre alguns dos favoritos de
criminosos e de forças que violam direitos humanos. E uma das submetralhadoras
produzidas pela empresa, segundo investigações, foi usada no assassinato da
vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista em março.
O caso Marielle acendeu mais uma vez o alarme de
ativistas que cobram controles mais severos para a exportação de armas pela
Alemanha e o banimento de vendas para países acusados de violar direitos
humanos.
Segundo apontou a Polícia Civil do Rio de Janeiro,
Marielle foi atingida por disparos de uma HK MP5, uma submetralhadora de uso
restrito no Brasil. Teoricamente, só deveria ser encontrada nos arsenais das
polícias Militar, Civil, Federal e de alguns grupamentos das Forças Armadas.
Não está claro se a arma foi desviada de um desses arsenais. Não é raro que
armas da H&K sejam encontradas em poder de criminosos no Brasil.
Exportações ilegais e process
A associação dos produtos da H&K com crimes em
países em desenvolvimento, como o caso Marielle, é rotineira para ativistas que
acompanham a trajetória da empresa e cobram mais responsabilidade em suas
vendas.
Segundo eles, a Heckler & Koch não é uma mera
fabricante que se mostra incapaz de rastrear o destino de seus produtos e que
não pode controlar como eles vão ser usados. Em alguns casos, membros da
empresa sabiam muito bem que suas vendas poderiam alimentar o crime ou
conflitos.
No momento, seis ex-funcionários da empresa -
incluindo dois ex-executivos - estão no banco dos réus de um tribunal de
Stuttgart. A acusação: vender ilegalmente fuzis de assalto para autoridades de
alguns estados do México, violando decreto do governo alemão que proibia esse
tipo de transação. O julgamento começou nesta terça-feira (15/05) e deve
terminar em outubro.
O caso envolve a venda de 4.700 fuzis HK G36 por cerca
de 4 milhões de euros. Eles não poderiam ser vendidos em certas regiões do
México onde foram registradas violações de direitos humanos por forças de
segurança. As transações ocorreram entre 2006 e 2009 e foram reveladas em 2015.
Segundo a acusação, a empresa chegou até mesmo a treinar policiais locais mesmo.
43 estudantes mexicanos que desapareceram no Estado de Guerrero em 2014.
Investigações mostraram que armas da H&K foram usadas no crime, que contou
com a participação de policiais corruptos.
Negócios com Brasil na mira de ativistas
Não há registros detalhados sobre as últimas vendas da
H&K ao Brasil. A empresa não informa sobre seus negócios no país. Dados do
Departamento Federal de Controle Econômico e de Exportações também são vagos.
Anualmente, o departamento divulga informes sobre exportações de armas da
Alemanha, mas se limita a apontar o número de transações e os valores
envolvidos - não há identificação de fabricantes e detalhes das armas. No caso
do Brasil, o último relatório aponta 37 exportações para o país entre janeiro e
abril de 2017, que envolveram mais de 10 milhões de euros.
Em novembro de 2016, já na esteira do escândalo
mexicano, a empresa manifestou intenção de se converter em um "fabricante
de armas ético" e de não vender armas para países que não fizessem parte
da Otan ou não fossem associados com a aliança, ou que não se enquadrassem em
índices satisfatórios de democracia e combate à corrupção .
A medida deve afetar países como o Egito e a Arábia
Saudita - mercados tradicionais da empresa. À época, o então presidente da
empresa, Norbert Scheuch, chegou até a apontar que a Turquia, apesar de ser
membro da Otan, não poderia mais comprar por causa do crescente autoritarismo
do governo local. O anúncio de 2016 não especificou se o Brasil foi enquadrado
na lista, mas as condições estabelecidas sugerem à primeira vista que seria o
caso.
Em abril de 2017, no entanto, a empresa manifestou
interesse em uma licitação da Polícia Militar de São Paulo para a compra de
cinco mil pistolas semiautomáticas. Segundo a PM, um representante da empresa
explicou que o diferencial da empresa era o suporte técnico de pelo menos 20
anos na manutenção de peças. Pouco depois, a licitação foi cancelada por
suspeitas de direcionamento para favorecer a italiana Beretta. A H&K não
chegou a apresentar proposta oficial.
Mesmo antes da morte de Marielle, outros episódios no
Brasil já haviam chamado a atenção de ativistas na Alemanha. Em 1992, oito
submetralhadoras HK foram usadas pela PM na chacina de 111 presos do Carandiru.
O ativista veterano Jürgen Grässlin, que ajudou a
montar o caso judicial sobre as exportações ilegais para o México, afirma que
pelas regras anunciadas pela empresa em 2016, a H&K não deveria mais tentar
fazer negócios no Brasil. Grässlin vem há mais de três décadas sendo uma pedra
no sapato da empresa ao cobrar mais responsabilidade e transparência. Ele
chegou a comprar ações da H&K para poder questionar os diretores nas
reuniões de acionistas.
Segundo ele, o Brasil não é diferente do México e não
deveria poder comprar armamento de firmas alemãs. "Pelas suas próprias
regras, o governo alemão não poderia autorizar vendas para países como o
Brasil, que não fazem parte da Otan, mas isso é regularmente ignorado, exceções
são abertas o tempo todo quando é levantada a justificativa de que há
'interesses alemães' em um determinado país. Levando em conta a situação dos
direitos humanos no Brasil, quem autoriza isso está contribuindo para piorar a
situação", disse ele.
Grässlin também vê com preocupação o fato de que a
H&K manifestou interesse em vender armas para a PM paulista mesmo após o
anúncio da nova política. "Ainda estamos esperando para ver como a empresa
pretende agir daqui para frente, mas isso é mais um motivo para suspeitar das intenções",
disse. "É preciso também que Berlim pare de quebrar suas próprias regras
com tantas exceções em autorizações que ainda permitem a venda de tanto
armamento ao Brasil."
Trajetória construída no pós-guerra
Na Alemanha, exportação de armas é tema controverso. A
cultura pacifista interna que caracteriza o país desde a Segunda Guerra Mundial
impulsiona ativistas que querem mais transparência nas transações. Ao mesmo
tempo, o governo é regularmente acusado de dar tratamento especial para as
fabricantes e de não agir para reforçar o controle. A Alemanha é o quinto maior
exportador de armas do mundo e o setor emprega 80 mil pessoas.
A H&K, por exemplo, é maior empregadora de
Oberndorf am Neckar, pequena cidade do sul do país. Fundada em 1949 por
ex-engenheiros que trabalhavam para a Mauser, empresa que fabricou fuzis para o
regime nazista, a H&K teve seu primeiro impulso ao vender armamento para a
Bundeswehr, as Forças Armadas da Alemanha Ocidental.
Nos anos 1950, desenvolveu o fuzil de assalto HK G3,
que passou a rivalizar com o soviético AK-47, ou Kalashnikov, em vendas
internacionais. O G3 logo passou a ser facilmente encontrado em dezenas de
conflitos no terceiro mundo durante a Guerra Fria. Entre os anos 1960 e 1980, a
Alemanha Ocidental ainda autorizou a H&K a emitir licenças de fabricação do
G3 para 16 países, como Irã e Paquistão, entre outros Estados que figuraram
regularmente como violadores de direitos humanos.
Nos anos 1990, a H&K desenvolveu o sucessor do G3,
o HK G36. Em 2008, Berlim autorizou acordo de licenciamento para instalação de
uma fábrica do novo fuzil na Arábia Saudita.
Na última sexta-feira (11/05), dias antes do
julgamento dos seus ex-funcionários, a Heckler & Koch voltou a afirmar que
não pretende mais vender armas a países que não se enquadrem nos critérios
estabelecidos. O interesse que a empresa manifestou na licitação da PM paulista
em 2017, no entanto, levanta dúvidas se a empresa está mesmo disposta a desistir
de um mercado como o Brasil.
E mesmo o anúncio sobre as restrições autoimpostas só
veio na esteira de novos obstáculos que o governo alemão impôs à venda de armas
ao Oriente Médio e à Rússia. A empresa também continua a atuar livremente nos
EUA, que consumiu 33% das suas exportações entre 2012 e 2016. Em feiras
americanas, representantes da empresa apresentam produtos para compradores
civis com um desembaraço que seria impensável na Alemanha, onde o controle de
venda de armas para cidadãos é rígido.
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