Investigações incluem vereador, policial militar e miliciano preso entre os prováveis autores do assassinato que coroa o domínio de uma estrutura criminosa capaz de controlar o Rio de Janeiro mesmo com a intervenção federal na Segurança do estado
O local onde a
vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes foram
assassinados, em 14 de março, no Estácio, região central do Rio de Janeiro, foi
tomado por um clima de deferência na noite da quinta-feira 10. Por mais de
cinco horas, ali foi encenada a reconstituição do crime — etapa fundamental
para a elucidação de um atentado que comoveu o País e o mundo, além de expor a
falência do poder público no estado e revelar as entranhas de uma organização
criminosa que controla serviços, verbas e votos em boa parte do Rio de Janeiro.
Mais que a execução de uma vereadora combativa, o atentado contra Marielle
demonstrou o imenso desafio de recuperar a cidade e o estado das mãos de
bandidos que visivelmente não se abalaram sequer com a intervenção federal na
Segurança Pública fluminense. Pelo contrário, fizeram do cadáver de Marielle um
troféu que coroa seu poderio e certeza de impunidade.
Para a reconstituição da
cena do assassinato foram foram destacados 200 homens do Exército, Polícia
Militar, companhia de trânsito e guardas municipais para a realização da
reconstituição. Três ruas foram fechadas em um perímetro de cerca de um
quilômetro. Plásticos pretos cobriram a cena, grades mantiveram longe as
pessoas que não tinham ligação direta com o fato e sacos de areia foram
espalhados para absorver os projéteis. “Essas testemunhas voltam no cenário dos
acontecimento e é importante através das percepções auditivas e visuais delas
reconstruir toda a dinâmica do crime e levantarmos qual o armamento empregado”,
disse o delegado da Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro, Giniton Lages.
“Nós não temos imagens do momento em que o crime ocorreu. Nós contamos com as
testemunhas presenciais. Elas foram localizadas e estão presentes no inquérito,
já fazem parte do arcabouço probatório do inquérito.”
Carro
alvejado para simular modo como Marielle e Andreson foram mortos. No local, um
muro foi pintado com o retrato dela, que se espalha pela cidade e pelo mundo
como símbolo de luta
Na semana passada,
tornou-se evidente que os responsáveis pelos assassinatos foram integrantes de
milícias. Passados dois meses do crime, a dificuldade em encontrar os culpados
confirma não apenas a incapacidade do Estado de lidar com uma crise de
segurança como revela que o poder das milícias não é mais “paralelo”, ele é o
que restou ao Rio — e a Marielle foi morta por ter ameaçado esse domínio. Uma
testemunha ouvida pela polícia afirmou que o assassinato foi planejado pelo
vereador Marcello Siciliano (PHS) e pelo ex-PM Orlando Oliveira de Araújo,
acusado de chefiar uma milícia no bairro de Curicica. A delação foi obtida pelo
jornal O Globo. A testemunha, um homem que está sob proteção policial, deu três
depoimentos. Ex-participante de um grupo paramilitar, ele disse que presenciou
quatro diálogos entre Siciliano e Araújo para tratar do crime. A trama para
matar Marielle teria começado em junho do ano passado. Num desses encontros,
realizado em um bar na Avenida das Américas, no bairro do Recreio, Siciliano
teria dito que Marielle estava lhe atrapalhando e cobrou de Araújo uma solução
para o problema. A testemunha, que trabalhou por dois anos como segurança de
Araújo, também forneceu os nomes dos quatro homens que estavam no carro de onde
saíram os tiros que mataram a vereadora, entre eles um PM do 16º Batalhão de
Olaria, um ex-PM da Maré e outros dois homens. Atualmente preso em Bangu,
Araújo estava foragido e acabou sendo preso em uma operação policial realizada
em outubro.
O AMIGO E
OS INIMIGOS O responsável pelas investigações e suspeitos de integrar
milícias (abaixo): Marielle é um cadáver dessa guerra (Crédito: Vanessa
Ataliba)
INVESTIGADOS
Raul Jungmann confirma que há suspeitas sobre miliciano (de costas) e Marcello
Siciliano (abaixo)
“A minha relação com a
Marielle era muito boa, não estou entendendo por que esse factóide foi criado” Marcello
Siciliano, verdeador (PHS) citado em delação de testemunha (Crédito:Carlos de
Souza)
Uma testemunha forneceu
os nomes dos quatro homens que estavam no carro de onde saíram os tiros que
mataram a vereadora, entre eles um PM do 16º Batalhão e um ex-policial
O delator informou que a
desavença entre Siciliano e Marielle foi motivada pelo avanço do trabalho
comunitário da vereadora em áreas da zona Oeste do Rio de interesse da milícia,
mas ainda dominadas pelo tráfico. Araújo funcionava como braço operacional do
vereador na região. Segundo ele, Araújo mandava na comunidade da Vila Sapê, em
Curicica, que está em guerra contra os traficantes da Cidade de Deus. Marielle
teria passado a apoiar os moradores da Cidade de Deus e entrado em conflito com
o vereador e o ex-PM. As duas partes passaram a se enfrentar por meio de
associações de bairro e Araújo sentiu seu poder ameaçado pela combatividade de
Marielle. Ele teria dado a ordem para a execução da vereadora um mês antes do
crime. Ordenou que gente de sua confiança cuidasse da clonagem de um carro – o
Cobalt prata usado no assassinato – e que realizasse um levantamento das
rotinas e dos trajetos que a Marielle costumava fazer antes de chegar e depois
de sair da Câmara Municipal.
Na quinta-feira 10, o
ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que comanda a intervenção na
segurança do Rio, ratificou a informação e confirmou que Siciliano e Araújo
são, de fato, investigados pela polícia. “O que eu posso dizer é que estes e
outros são investigados e que a investigação do caso Marielle está chegando a
sua etapa final. Acredito que em breve nós vamos ter resultados”, disse o
ministro.
Crime semelhante
Os acusados se defendem.
O miliciano Orlando Oliveira de Araújo negou as acusações por meio de uma
carta. Nela, nega a participação no crime e afirma que “nunca tinha ouvido
falar” em Marielle. “Informo também que nunca estive com o vereador [Marcello]
Siciliano em nenhuma oportunidade”. O ex-policial militar foi preso por um crime
semelhante ao que resultou na morte de Marielle. Em 2015, três homens teriam
participado de uma perseguição a carro e matado Wagner Raphael de Souza, o
Dádi, a mando do ex-PM. Uma das vítimas sobreviveu e contou que Dádi “não
baixava a cabeça” para a milícia e que era uma pessoa muito forte na
comunidade, o que o tornou perigoso rival da facção. Araújo é acusado de
chefiar milícias em comunidades da zona oeste do Rio. O faturamento da
quadrilha seria de cerca de R$ 215 mil por mês. O crime pelo qual ele está
preso teria sido causado pelo fato de a vítima não ter pedido autorização para
alugar um terreno.
Durante entrevista
coletiva na quarta-feira 9, o vereador Marcello Siciliano afirmou que a
acusação contra ele é mentirosa. “A minha relação com a Marielle era muito boa,
não estou entendendo por que esse factóide foi criado”, disse. O vereador
também afirmou que estava sendo massacrado nas redes sociais e que não é
possível dar muitos créditos para a fala de uma pessoa que não se sabe “nem a
credibilidade que tem.” Para mostrar proximidade com a vereadora morta a tiros,
ele disse que ela esteve até no aniversário dele.
“Nós contamos com as
testemunhas presenciais. Elas foram localizadas e fazem parte do arcabouço
probatório do inquérito”
Giniton Lages, delegado da Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro
Giniton Lages, delegado da Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro
Indicado ao nobel da paz
Filiado ao Partido
Humanista da Solidariedade (PHS), Siciliano tem 45 anos, é casado desde os 19 e
pai de quatro filhos. Sempre que possível, ele exalta sua relação com a família
em entrevistas e pronunciamentos. Uma de suas bandeiras nas eleições foi a
urgência de uma “nova política”. Em 2010, ele foi indicado para o Prêmio Nobel
da Paz por sua atuação como empresário e envolvimento em ao menos seis projetos
sociais. Uma fonte muito próxima de Marielle e que colabora com as
investigações também desconfia da veracidade do testemunho anônimo. “Esse depoimento
é muito estranho. O mandato de Marielle não tinha ligações com Jacarepaguá e a
zona oeste. Além disso, um miliciano não chega em um lugar público e fala nomes
de pessoas que quer matar”, disse com a condição de não ser identificada. “É
lamentável o vazamento em uma investigação como essa. Temos que tomar cuidado
porque quem permitiu isso tinha algum interesse”, diz Marcelo Freixo, deputado
estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL.
Ivan Marques, diretor
executivo do Instituto Sou da Paz, também teme pelo andamento das investigações
após o vazamento. “Os casos não podem virar espetáculos. A polícia tem de
prestar contas à população e a população precisa ter o mínimo de confiança na
polícia”, diz ele, para quem o assassinato de Marielle pode ser uma mensagem
clara de que quem manda no Rio de Janeiro é o crime – e ele não quer ser
desafiado. As décadas de ineficiência e falta de fiscalização do poder público
no Rio de Janeiro abriram brechas para a atuação do crime organizado e da
própria polícia, que encontrou nesse vácuo de poder oportunidades de abrir
negócios lucrativos. O crime se expandiu para a oferta de serviços básicos à
população, como entrega de gás e transporte, o mais rentável deles. “O Estado
deixou de investir em comunidades para priorizar outras áreas, mas agora o
preço a pagar é muito mais alto. Praticamente um terço da população está
sujeita a pequenos ditadores das comunidades”, diz José Vicente da Silva Filho,
ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel reformado da Polícia
Militar de São Paulo. Foi essa ditadura que assassinou Marielle.
Ativistas silenciados
Antes do Caso Marielle,
os assassinatos de outros dois ativistas provocaram repercussão internacional.
Em 1988, o líder sindical e ambientalista Chico Mendes foi executado, aos 44
anos, com tiros de escopeta em sua casa, em Xapuri, Acre. Mendes defendia os
interesses dos seringueiros e formas sustentáveis de extrativismo florestal. Em
2005, a missionária católica norte-americana Dorothy Stang, de 73 anos, foi
abatida em uma estrada remota, em Anapu, Pará. Ela atuava ao lado de
trabalhadores rurais em uma área de intensos conflitos fundiários. Ambos foram
executados a mando de fazendeiros que acabaram condenados pela Justiça. Um
relatório da Anistia Internacional divulgado em dezembro mostrou que 58
ativistas ambientais e dos direitos humanos foram mortos no Brasil entre
janeiro e agosto de 2017. Em 2016, foram 66 assassinatos.
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